Dojo Kun explicado

O Dojo Kun do Karate é uma sequência de axiomas desenvolvida na década de 1960. As cinco célebres frases podem ser encontradas expostas em quadros na parede da maioria dos Dojo, mas você conhece seu significado?

Conteúdo

kun nakayama Shinjigenkan Brasil
Dojo Kun – caligrafia de Masatoshi Nakayama

Origem

O Dōjō Kun [道場訓] – Instruções do local do Caminho – do estilo Shōtōkan de Karate é uma sequência de axiomas desenvolvida por Takagi Masatomo sensei, que na época (década de 1960) era o Secretário Geral da Nihon Karate Kyokai (Japan Karate Association – JKA). O assunto é muito vasto e controverso, e praticamente todas as versões do Dōjō Kun postadas na internet são traduções que invalidam a compreensão desses cinco axiomas. O Dōjō Kun são as instruções, as diretivas padrão de determinados estilos de artes marciais deixadas pelos seus respectivos mestres como um guia de comportamento dos seus praticantes. Então vale lembrar que o Dōjō Kun aqui apresentado não é o único. Outros estilos de Karate possuem outras sequências de instruções/regras que são ensinadas. Aqui vamos estudar juntos o conjunto de ensinamentos do estilo ensinado no Instituto Shinjigenkan.

Interpretações

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Dojo Kun – caligrafia de Tetsuhiko Asai

No ocidente, o Dōjō Kun mais conhecido, que é o do estilo Shōtōkan, foi “simplificado” para cinco palavras: CARÁTER, SINCERIDADE, ESFORÇO, ETIQUETA e CONTROLE. Isto é um erro, porque em japonês também existem estas palavras: JINKAKU [人格], SEI-I [誠意], DORYOKU [努力], REIGI [礼儀] e JISHUKU [自粛] respectivamente. porém, o Dōjō Kun correto apresenta frases com significado sólido, por isso esta simplificação não é bem-vinda nos círculos tradicionais. Outra questão que toca pensarmos é de que a versão mais popular na internet possui significado ambíguo e aberto, coisa indesejável que produz inúmeras distorções de interpretação.

A necessidade de haver o ensino e a ideia de seguir regras e contrair dívidas morais (On) no Karate nascem da amalgama das grandes tradições sapienciais do Japão, especialmente o Xintoísmo e o Neo-Confucionismo. O Xintoísmo, a tradição nativa do Japão, além de valorizar o contato com a natureza e suas forças, destaca a importância do respeito aos antepassados. Nesse sentido tivemos séculos de educação em valores de dívida com os pais e os anciãos. Com a introdução do Confucionismo também houve a apropriação de um complexo sistema ético pelos japoneses. Esse sistema possuía vários princípios, e um dos mais curiosos era o das Cinco Virtudes Confucianas, ou Goju no Toku (五常の徳). As Cinco Virtudes, ou Cinco Éticas (五倫の道) eram: Benevolência ou Jin (仁), Lealdade ou Gi (義), Etiqueta ou Rei (礼), Razão ou Chi (智) e Honestidade ou Shin (信). Esses valores influenciaram muito os guerreiros japoneses (samurai) e a construção de seu código de conduta transmitido pela convivência e oralidade. Outro elemento importante no Neo-Confucionismo é a confluência entre ideias e práticas originalmente confucianas com muitos elementos do Taoísmo. Entre essas ideias podemos destacar a ciência dos cinco elementos, ou cinco agentes (Gogyo) que influenciam diversas construções simbólicas das práticas alicerçadas nessa tradição, como é o caso das várias formas de Budō (Judô, Karate, Aikido, Kendo, Kyudo, etc).

Você pode entender melhor os Cinco Agentes e outros princípios metafísicos nesse artigo: https://shinjigenkan.com.br/principios-fundamentais-das-cinco-artes-chinesas/

Analisando os Cinco Axiomas

Um detalhe interessante sobre os cinco ensinamentos do Dōjō Kun é perceber que todas as frases iniciam pela palavra Hitotsu (Primeiro), que aqui carrega o significado de “importante” e mostra que antes de tudo todos os axiomas têm a mesma importância e formam uma unidade holística. Não há, portanto, um ensinamento isolado e todos eles são fórmulas para se realizar o outro, como no ciclo dos Cinco Agentes.

A sequência de cinco regras é popularmente ensinada, mas para não ser descontextualizada e distorcida, sugerimos sempre o estudo aprofundado. Nesse sentido você pode acessar o capítulo 5 do livro “Bushido e Educação” pelo link a seguir: https://www.researchgate.net/publication/336409377_O_Bushido_na_pratica_o_caso_da_educacao_em_valores_no_Karate_Shotokan_The_Bushido_in_practice_the_case_of_values_education_in_Shotokan_Karate

Tenha sempre em mente que o Dōjō Kun é um norte para alcançar aquele que é o objetivo principal do Karate segundo o mestre Gichin Funakoshi: desenvolver o caráter de seus praticantes.

Desenvolvendo o Caráter

Ideogramas: 一、人格完成に努める事。 (Hitotsu, jinkaku kansei ni tsutomeru koto.)

Tradução: Importante, buscar o aperfeiçoamento do caráter

Tradução equivocada da internet: Primeiro, Esforçar-se para a formação do caráter!

Há pouca diferença nessa tradução em relação à sua correção, portanto temos pouco a analisar sobre esse axioma. O que mais chama atenção é o uso literal de Hitotsu como primeiro, removendo seu significado de interconexão das cinco frases. Além disso, usando o texto popularizado caímos na ideia de formar alguém do zero, como se os estudantes fossem tábulas rasas, desconsiderando suas histórias e contextos. Na verdade, a tradução correta nos aponta um caminho melhor, o do aperfeiçoamento. Todos podem se aperfeiçoar e evoluir, independente de seu contexto original, podem alcançar a polidez e a harmonia.

É o mais importante objetivo para aqueles que estão realizando o treinamento de Karatedo. Respeitar a personalidade de cada um no treinamento do dia a dia é difícil, é necessário realizar esforços para desenvolver os vários aspectos da natureza humana.

Explicação do Mestre Masao Kagawa, 9º Dan, disponível no site japonês da JKS
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Rivais criam um profundo espírito de amizade e respeito devido a como um ajuda o outro a crescer

Cultivando a Sinceridade

Ideogramas: 一、誠の道を守る事。 (Hitotsu, makoto no michi o mamoru koto.)

Tradução: Importante, proteger o Caminho da Verdade

Tradução equivocada da internet: Primeiro, defender o verdadeiro caminho da razão!

Essa é uma das mais problemáticas frases, pois Makoto (sinceridade) é completamente tirada de contexto para se falar sobre racionalidade e outros temas que nada tem a ver com a virtude original. Como se não bastasse, há uma pretensa ideia implícita a essa tradução distorcida de que existe um único caminho correto e racional, coisa que nos dias de hoje é facilmente refutável. O que é o VERDADEIRO caminho da razão? Essa frase megalomaníaca cria todo tipo de distorções de um importante ensinamento que conferimos a seguir. “Makoto no michi” em última instância significa literalmente “de forma sincera”, então podemos esquecer expressões que direcionam a outros significados como “caminho” e “razão”.

“Makoto” é a sinceridade, quando você expressar uma fala, isso deve ser feito de forma sincera. O que disser deve ser feito, não se deve mentir, essa é a raiz para aumentar a confiança das pessoas em você. Tudo no treinamento de Karate deve ser feito com sinceridade, de forma verdadeira, isso não se limita às falas.

Explicação do Mestre Masao Kagawa, 9º Dan, disponível no site japonês da JKS
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Mestre Masao Kagawa

Dar o seu Melhor

Ideogramas: 一、努力の精神を養う事。 (Hitotsu, doryoku no seishin o yashinau koto.)

Tradução: Importante, cultivar o espírito de esforço

Tradução equivocada da internet: Criar o intuito do esforço

Essa frase, tem mais problemas de interpretação do que de tradução – que acaba sendo próxima. Ao invés de ensinar os estudantes a dar o seu melhor (caracterizado pela expressão de apoio “gambatte” exaustivamente repetida no dia a dia dos japoneses) muitos instrutores ensinam uma obediência cega em séries de máxima exaustão, como se aquilo fosse o próprio sentido do axioma. Como você pode saber, “seishin” é uma expressão para atitude, e aparece aqui em “doryoku no seishin”, ou espírito do esforço; mas também em outras importantes ideias do Karate como o “osu no seishin”, ou espírito de suportar pressão (osu).

Não se pode ser bem sucedido, a não ser que se desenvolva o espírito do esforço. Este é um conceito que não pode ser facilmente executado, mesmo que se saiba na teoria. Por conseguinte, a fim de se desenvolver o espírito do esforço, é que existe a necessidade de fazer tudo na vida sinceramente. Assim se encara os desafios que cada um se propôs, e não se finge ser o que não é.

Explicação do Mestre Masao Kagawa, 9º Dan, disponível no site japonês da JKS
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Karateka de todo o mundo treinando juntos na Universidade Teikyo

Honrar a Si e aos Outros

Ideogramas: 一、礼儀を重んずる事。 (Hitotsu, reigi o omonzuru koto.)

Tradução: Importante, honrar a cortesia

Tradução equivocada da internet: Primeiramente, Respeito acima de tudo

Essa é uma frase de sentido bastante alterado. Mesmo que possamos pensar que ao seguir a etiqueta relevante ao Budo também estaríamos chegando a uma forma de desenvolver o respeito entre as pessoas, ainda seria uma distorção significativa da tradução. Apenas a menção ao respeito pode nos levar a pensar que o Karate está aberto a qualquer modelo de moralidade ou costumes de relação interpessoal da cultura onde se está praticando, ou ainda a versão da visão pessoal de valores de um certo grupo. Porém o Budo possui uma série de procedimentos muito claros de etiqueta (reigi saho) que foram desenvolvidos e aperfeiçoados ao longo de gerações, sendo um conjunto de procedimentos que inibem comportamentos violentos e invasivos. Isso é muito importante pois estimula cada um a se autorresponsabilizar por seu processo de desenvolvimento num contexto de treinamento de lutas.

Se quiser saber mais detalhes sobre a etiqueta relevante no Karate acesse o artigo: https://shinjigenkan.com.br/reigi-saho-a-etiqueta-no-karate-do/

Cortesia é uma manifestação da mais pura natureza humana, é a raiz da ordem. Prostrar-se em frente ao outro também faz parte da prática, mas na verdade a cortesia deve ser uma forma de conhecer a si mesmo. Contra adversários numa disputa ou luta, se agradece a oportunidade do embate, e o aumento da confiança do oponente é perceptível. O homem de valor real transparece civilidade. O respeito nunca deve ser negligenciado.

Explicação do Mestre Masao Kagawa, 9º Dan, disponível no site japonês da JKS
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Saudar aproximando-se da terra, do húmus. Desenvolvendo a humildade.

É importante ressaltar ainda que esse quarto princípio envolve a ideia de participar dos treinamentos (espacialmente kumite) sem subestimar o parceiro de treino. Isso seria um desrespeito para com o companheiro. Portanto devemos dar nosso máximo, sem agredir. Em situações em que um colega nos acerta, mesmo aquelas em que o orgulho pode ser abalado (como quando se recebe um golpe no rosto) devemos agradecer. Agradecer por termos sido alertados de que temos uma fraqueza, que agora torna-se consciente e poderá ser lapidada.

Suprimir o Instinto Violento

Ideogramas: 一、血気の勇を戒むる事。 (Hitotsu, kekki no yū o imashimuru koto.)

Tradução: Importante, controlar o ímpeto violento

Tradução equivocada da internet: Primeiramente, conter o espírito de agressão

O último axioma funciona na tradução que mais conhecemos na internet, vale apenas ressaltar alguns elementos imprecisos. Ao usar o termo “espírito” não se está nem referindo à mente/alma/espírito/coração SHIN e nem ao estado mental/atitude SEISHIN. A frase refere-se mais precisamente ao ímpeto ou instinto agressivo que às vezes pode nos controlar em situações limites de pressão. Controlar esses ímpetos é um exercício importante contra a tomada de atitudes futuramente reprováveis. Somos capazes de violência física, quando atacamos outra pessoa com golpes violentos, mas também somos capazes de outras violências. Podemos ser violentos ao excluir propositalmente alguém do convívio social por inveja, quando somos agressivos nas competições tentando vencer à qualquer custo, quando difamamos alguém por ciúmes ou qualquer outra forma de agressão verbal.

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A maneira como alguns atletas exageram nas comemorações durante as competições atuais é considerado desrespeito dentro da forma tradicional de pensamento e da etiqueta.
(Foto de Harry How/Getty Images)

Eventualmente o coração do homem é dominado pelo egoísmo. Ser impulsivo e tentar vencer a qualquer preço não é correto. Deve-se pensar nos outros. A pessoa violenta pensa que está tendo um comportamento valente, mas visto de fora não passa de algo cômico. Aqueles que se esforçam no treinamento de Karatedo não se devem apegar a ninharias, isso traria vergonha ao nome do Karatedo. Quando surgem os apegos, é importante ficar calmo e sorrir de coração.

Explicação do Mestre Masao Kagawa, 9º Dan, disponível no site japonês da JKS

O Caminho da Virtude no Dojo Kun

A relação entre as cinco frases do Dōjō Kun também nos traz a inter-relação entre as fases de todos os fenômenos (incluídos aí os fenômenos mentais) representadas pelos Cinco Agentes. Cada Agente está relacionado a uma das virtudes na tradição Taoísta. O Taoísmo é uma das mais fortes correntes de pensamento a influenciar o Neo-Confucionismo, portanto aparecendo na forma de vários símbolos e ensinamentos na arte marcial japonesa. Uma das mais importantes fontes sobre as virtudes é o Dao De Jing (Livro do Caminho e da Virtude), o segundo texto mais traduzido e lido em todo mundo, atrás apenas da Bíblia cristã.

As virtudes no Taoísmo são manifestações naturais (shizen) de aspectos harmônicos com a Vida e a Sociedade, ou seja, emergem naturalmente do ser humano quando atingidos. Os vícios, por sua vez, são nossos comportamentos distorcidos ocasionados pelo desequilíbrio interno. As cinco virtudes são: Polidez, Sinceridade, Bondade, Sabedoria e Justiça.

Virtudes Shinjigenkan Brasil
Quando não desenvolvemos uma vida virtuosa somos controlados pelos vícios

Como Funakoshi sensei nos ensinou, o principal objetivo do Karate é o desenvolvimento do caráter de seus praticantes, e isso se expressa em uma natural polidez. Aquele que desenvolveu seu caráter consegue conviver com qualquer tipo de pessoa de forma harmoniosa sem ser controlado pelos preconceitos. Os preconceitos são a manifestação da nossa reatividade (medo) àquilo que negamos (jogamos para a sombra, usando o jargão psicológico). Para alcançar a polidez natural devemos ser sinceros.

A sinceridade está no cultivo da verdade, no sentido de evitarmos a mentira e espalhar a informação falsa e o conflito. Mas muito mais importante do que dizer a verdade aos outros é dizer a verdade a si mesmo. Quando sou capaz da sinceridade comigo mesmo consigo ver com clareza e aceitar meus limites, pontos fracos e falhas. Essa aceitação me permitirá o esforço no processo de lapidar essas arestas desenvolvendo o caráter.

Ao reconhecer meus defeitos só me resta uma fórmula para desenvolver o caráter: dar o meu melhor para me aperfeiçoar. O caminho de resolver suas próprias fraquezas de forma sincera envolve desenvolver o espírito do esforço. Através desse espírito posso agir de forma disciplinada, constantemente fazendo as mudanças e os exercícios que me levarão a alcançar minha melhor versão. Dar o meu melhor todos os dias me afastará dos arrependimentos, me ajudando a alcançar a bondade.

A ferramenta que me permite extrair de minha mente e meu corpo o máximo a cada instante é a etiqueta (reigi saho). Através dela faço o máximo que posso para sinceramente extirpar minhas fraquezas físicas, mentais e morais, assim como evito os comportamentos controladores e egoístas. A etiqueta me ensina um método de convivência onde posso transparecer a máxima civilidade sem bloquear meu próprio poder, e assim crescer como indivíduo. A etiqueta é o exercício diário da gentileza, humildade e da convivência pacífica que levam à sabedoria.

Quando alcanço a sabedoria sobre meus fluxos emocionais fico cada vez mais ciente de minha natureza interna. Esse auto conhecimento me permite não ser controlado pelo impulsos, especialmente os violentos. Mesmo nas situações de disputa e de confronto físico posso manter o equilíbrio e a clareza mental. Esse princípio nos lembra que o poder oriundo de emoções destrutivas como a raiva, a impaciência e o ódio são apenas fogo de palha e logo se esvaem. Não podem suplantar aqueles que tem seu poder sustentados pelas virtudes e portanto os vícios são indesejáveis fontes de ímpeto daquele que trilha o Caminho do Guerreiro. Se o ser humano entrega seu coração a essas emoções, logo a violência lhe impediria de agir de forma respeitosa. Sem respeito não conseguiria dar o seu melhor. Sem dar o seu melhor não poderia trabalhar a si mesmo na forja da sinceridade. E sem desbastar seus defeitos sinceramente não pode alcançar o desenvolvimento do caráter e a polidez natural. Conter os ímpetos violentos é o último princípio mas não o menos importante. Não realizá-lo pode ser a ruína de todos os demais. Manter o autocontrole e agir com temperança é a base para construir as demais virtudes. Um grande samurai ensinou que “poder sem justiça é apenas violência”. Portanto manter-nos na ação correta e transparente é a fonte da justiça.

Quer saber mais sobre o Dōjō Kun? Assista a palestra no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=B3bZlnnXTbc

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Dojo Kun – caligrafia de Sadamu Uriu

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